Boto meu ouvido em um buraco na parede e escuto:
-Ahhhhhhhhh-
Parece alguém suspirando, sorvendo uma grande quantidade de ar. O som sai afunilado e bizonho.
Boto meu olho no buraco, não vejo nada, só escuridão. O buraco, em uma parede de cobre, vermelhíssima, fria.
-Tem alguém aí?- Pergunto, agora botando minha boca no orifício circular interessante. Ele é uma geóide, como um planeta terra. Por um segundo penso como é simplificante nosso sistema visual, que apreende a forma disforme e já a enquadra na classificação ''Círculo'', só por não ter cantos. Eu também não tenho cantos e não sou um círculo.
Começo a cantar junto:
-Ahhhhhhhhhhhh- De forma rítmada, mas ao mesmo tempo acompanhando o torpor da voz que chama do outro lado.
-Não, você não pode me imitar- Diz a voz do outro lado, obtendo um tom sóbrio, claro, como se fosse um locutor indignado.
-Qual o problema- Não, - percebo eu, embasbacado- quem é você?
-Prendaaaaaaaaaaaaa- Diz ele, com a mesma voz monótona, entorpecida, os ecos bailando conforme as palavras são pronunciadas.
-Quê? Prenda o que?
-AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh- Dessa vez parece que ele nunca mais vai parar de pronunciar a anomatopeia, ou seja lá o que ele queira exprimir.
-PRENDA!
Diz ele, e o canto da parede se desprende, estou despencando de uma altura gigante, mas não vou a lugar algum-
Paro no ar, indignado, pairando a metros do chão, e digo:
-Mano - Não quero prender nada, não.
-AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAH-
Sopra o vento de cima, e quando vejo , estou planando pelo nada escuro em que eu iria cair.
-Desssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssss-
Diz o vento, o céu, antes opaco, sem iluminação alguma, um breu negro, agora é magenta. As núvens de algodão azul cristalino passam por mim , tenho vontade de pegar algumas e enfiar no meu bucho vazio, mas um pássaro vem voando em minha direção e diz:
-O que você tem digerido?
Vem um próximo pássaro, tocando um digderidoo. Procuro minha flauta, estava em meu bolso, não sei onde deixei.
-Por que você não sabe onde está sua flauta? Pergunta o segundo pássaro que vem voando a seu lado.
-Por que você não sabe? Pergunta o terceiro, trazendo um ukulele.
-Por que, meus amigos, parece que os sons digestivos de captação de humanos, esganiçados, cerram meus ouvidos e fazem meus olhos sangrar.
-Aprenda.... Diz um dos pássaros.
-Desprenda.... Diz outro dos pássaros.
-Desperta! Se o pássaro tivesse dedos, ele piscaria na frente de meus olhos, mas não os tendo, ele simplesmente me olhou fixo, e acordei.
-Sonhei que... que estava num labirinto... me diziam para aprender...
Estou em uma tigela, cheia de leite. O leite não tem cheiro, gosto, parece uma ilusão de seda de longe, acho que meus trompetes falam mais alto que as rachaduras dos pratos, é uma competição injusta, estou me arrastando, dançando sentado no prato, na tigela, e vejo muitos conhecidos desconhecidos com rostos que um dia talvez tenham sido familiares, todos eles são eu e eu sou todos eles.
Em um ballet mágico, todos nós, nus, sentados, uns com cabelo nos olhos, os rostos voltados para baixo, os braços dados, rodamos para a esquerda e direita, lentamente.
Nos movimentamos em círculo, nesse labirinto, para onde estamos indo, penso? Eu acordei, penso? Será que transito ou estou em transe?
Se um dos corpos dopados enigmáticos do local pudesse dizer alguma coisa, decerto diria:
-Shhhh, passando os dedos ensopados de leite pelos lábios.
Mas eu- penso- queria saber- E quando menos percebo, estou de olhos fechados, dançando um ballet calmo, um colega segura meu braço esquerdo e o gira por trás de sua cabeça , sem que eu precise realizar nenhum esforço. Acho engraçado. Quando, penso eu, chegaremos?
O eu do futuro chega para mim, vestindo uma máscara de metal na metade de seu rosto, o olho mecânico, porque é uma referência ao exterminador do futuro.
-Você quer chegar? você chega quando você morre, sei lá. Ou talvez você comece algo realmente quando você morre. Morrer é seu melhor projeto, esse sim vai dar certo. Todos os outros contatos, vivências são tão efêmeros quando o sopro......
Sopra o vento do -AAAAAAAAAAAaaaaahh de novo.
Vejo meus colegas dançando na sopa de líquido branco abaixo, entorpecidos e inebriados na tigela. Parecem estar se divertindo.
Um pássaro passa ao meu lado e pergunta:
-Então, o que te faz não cair?
-Digo uma série de fatores e áreas de interesse.
-Comece a estudar a partir daí.
-O quê? Você não vai me acorrentar didaticamente?
-Claro que não, seja interdisciplinar.
-Que lindo, penso eu. Onde avalio o senhor?
-Aqui, cinco estrelas por favor. Se avaliar cinco vezes, ganha cupom no Ifood.
-Como pensar o ser?
-Sei lá, pensa o que você não quer ser. Cuidado com seu SuperEgo. E com a questão central dessa budega toda.
-Qual?
O pássaro some, caio em um imenso labirinto verde. E uma pessoa chega a meu lado, cumprimento-na e penso: O que estamos fazendo aqui?
A pessoa me ignora. Olhe para mim, ao menos, penso.
Entramos pelo portão, com essa incrível cúpula verde, videiras frondosas com cachos de uvas exalando sua fragância frutada pelos dutos de nossas narinas, cheiramos.
Sento no chão, na entrada de algum lugar que parece esse labirinto.
-O que fazer então? Pergunto eu.
Você pensa. Somos conhecidos, amigos, amantes, noivos, casados, almas gêmeas, um ser só, cansados um do outro, divorciados, somos insensíveis um ao outro, somos completos estranhos. No correr de um minuto, nem aguento mais ver seu rosto, seus defeitos, e não sei se é porque em você enxergo tudo que não gosto em mim.
-Vamos... comer as uvas? você pergunta, com a dúvida em seus olhos.
-Caíremos do Éden quando fizermos isso? Pergunto eu.
-Não, mas parece uma espécie de comunhão.
-Sei lá, começo eu- Por algum lugar aqui deve estar Dionísio, vamos bater um papinho com ele.
Entramos no labirinto, o chão, que antes era úmido , escuro e macio, agora torna-se arenoso e poeirento.
-Onde está a água para umidificar nossos lábios, esses cheios de rachaduras?
-Boa pergunta, digo eu com a mão em frente da cara, enquanto um sol roxo tenta nos tostar. Olhamos para os lados, não há sombras.
-Humano número dois- Me chama meu amigo.
-Diga, Humano número um.
-Não sei se conseguirei seguir sob o sol por todo esse tempo.
-Não tem problema, fique na minha sombra.
Fiquei em pé, no meio das areias verde limão do labirinto, sendo tostado constantemente, bolhas se abrindo em minha mão. Começo a dormir em pé , estou cansado.
Estou cochilando, quando acordo, estou com pequenos ferimentos nos braços, abaixo das axilas, atrás dos joelhos, brotoejas, calombos e tudo me deixa extremamente desconfortável. O Humano número um preferiu seguir seu caminho só, sem me avisar.
Vejo uma cobra se aproximando de mim. Penso que, se me movimentar em silêncio, posso confundir a cobra. Deito no chão, a parte da frente de meu tronco protegida pela minha roupa, e começo a me contorcer e balançar de forma análoga a cobra, e busco não olhar em seus olhos. Por que, cobra? pergunto eu a mim mesmo- por que você aparece no meu caminho, você quer me dizer alguma coisa? Talvez ela não queira dizer nada. O bom da vida é não querer, e caçar uns ratinhos de vez em quando. Não sei, comer ratinhos crus, sem nem um temperinho? Será que o ruim da vida é a gente ter inventado um monte de engenhocas e ficarmos frescos com comida?
Queria ter assistido a mais Á prova de tudo. Mas, aparentemente, não estava pronto pra isso. Será que algum de nós, um dia, estaria, talvez, pronto para esse labirinto?
Eu nem sei onde estou.
A cobra abre sua boca, dou uma breve espiada para ver se consigo achar o coelho da Alice.
Vejo os maxilares se projetando, com as presas lindamente arquitetadas pela natureza para darem o bote, e faz um som sibilante com a boca.
Se aproxima do meu corpo rastejante, e anda em paralelo comigo por alguns quilômetros. A cobra, minha amiga. Para quê ser encantador dela, se posso simplesmente trocar de peles tanto quanto ela? Andar a espreita, sem fazer muito barulho tanto quanto ela? Talvez seja sobre fazer silêncio.
O sol está escaldante, e lembro que iniciei isso querendo aprender alguma coisa. Talvez aprender a chorar.
Enfilero pedrinhas no deserto, talvez eu seja um exímio professor. A cobra se vai com o vento, pronta para as próximas andanças.
-Olá alunos- digo eu, meio alucinante- Hoje vou ensinar-lhes a chorar.
Primeiro- digo eu- vocês tiram toda a roupa. Tiro minha camisa esfarrapada, meus coturnos feitos do couro de algum boi perdido no passado.
As pedras não têm roupa, então ficam só esperando o próximo passo.
As roupas têm cheiro de suor e cecê, que bom que são pedras, não precisam ser expostas a isso. Mas são boas roupas, resistentes.
Agora, vocês tentam ativar os dutos lacrimais, se lembrar de algo realmente doloroso de suas vidas, ou só tentem se comover com a existência.
Eu forço os dutos lacrimais por uns minutos, percebo que não consigo chorar, abro um buraco na areia do deserto, e deito lá. Cubro o teto, e quando vejo estou soterrado na areia. Os grãos caem nos meus olhos, no meu cabelo , nos meus bolsos, nas minhas orelhas, vejam alunos, - digo eu- areia caindo em minha boca- Isto é drama! Ou teatro! Ou vida! Ou perfomance! Só não continuei a falar, porque a areia entrava em minha boca e estava me deixando sem ar.
Os alunos observam, estáticos. Estão aprendendo, decerto, penso.
Cansei, me debato todo para sair do buraco que eu mesmo cavei. -Pedras, chamo eu- digam alguma coisa!
As pedras permanecem estáticas.
Saio do buraco, ávido, desnutrito, um tanto melancólico. Olho para uma pedra, e está escorrendo uma pequena gota d'água, logo do meio da pedra, para baixo. Ela se solidifica em pedra cintilante, brilhante, cinza, talvez seja opaca, e o brilho seja só o reflexo do fogo violeta do sol.
Tento pegar a pérola recompensa, mas ela está colada no chão. Faço força para tirar a pedra do chão, não consigo. Talvez ela não queira ser levantada. Cai outra roliça gota de água do meio da mesma pedra, e me sinto como o Bidu, da turma da Mônica, falando com as pedras.
De súbito, as pedras se amontoam ao meu redor e cantam ''Eu tomei meus remédios e fico feliz o tempo todo''! E percebo que é hora de seguir em frente. Me ensine alguma coisa, vida, penso eu.
O céu se abre, e uma enorme língua cósmica feita de poeira cósmica se contorce conforme fala:
-Ué, estou te ensinando. Você fez uma pedra chorar, parabéns. Já pode ensinar isso a pessoas e bichos.
- Qual a serventia, céu?
-Sei lá, olha pra mim. Eu nem existo, eu sou só camadas de gás que vão amenizando em tons de azul mais claro o negro purpúreo do universo, eu sou só gases acumulados, tem um céu dentro do que você chama estômago. Mas dá para respirar melhor no ''meu céu'', isso porquê eu não tenho um estômago.
Será, penso eu, que o céu , então , não teria um estômago?
Acordo na maca do hospital, tudo branco gelo ao meu redor, eletrodos presos a meu cérebro.
-É uma ameaça a didática do século vinte e um.. Comentam as enfermeiras ao redor.
-Ouvi falar que ele nunca leu um livro sobre didática...
-Botem em prática a minha vida, então, a teoria de lançar alguém pela janela. Lhes garanto que a adrenalina sentida em despencar em direção ao nada é muito potente para despertar para o saber.
-Dopamos ele novamente?- Pergunta a enfermeira, fatigada, olheiras fundas despencando de seus olhos, o uniforme com cheiro de guardado molhado, uma delícia.
-Vamos todos- A enfermeira pega a agulha e injeta nela mesma, achando graça .