Não sei como estou sobrevivendo. O instinto foi aflorado dentro de mim, e cá estou. Minha barba já está na altura do peito. Estou uns trinta quilos mais magro, benditos peixinhos que fogem meu alcance, escapolem pelas minhas mãos e me deixam de alma e estomago vazio. É. Faz mais de meio ano que estou aqui, nessa ilha no meio do pacífico... já gritei por ajuda, dancei, tentei mandar garrafas por aí, quase enlouqueci pois aqui não tem álcool... tenho que dizer, fico muito solitário. Meu caderno é a única coisa que ainda tenho comigo. Impressionante como tudo pode ser artificial, todas as suas relações podem ir embora com um único acidente. Meu mundo virou, literalmente, de cabeça para baixo. Se antes eu era artista, hoje sou um náufrago, mas feliz. Me sinto bem aqui. Claro, os mosquitos atacam minha pele se eu não me proteger com barro, e eu ainda não fiz amizade com os pássaros. Queria poder imitar o canto deles. Eu durmo em uma barraca mal feita, alguns galhos finos juntos, umas folhas de palmeira que eu lutei para arrancar, eita negócio difícil de tirar. Sinto saudades da música. Sinto saudades do soar de um tambor, dos acordes de um violão. Mas, ao mesmo tempo, não sinto saudades do barulho caótico do engarrafamento nosso de cada dia. Não sinto saudades das reclamações de minha família, ou das perturbações que giram em torno do ``preciso ter dinheiro``. Aqui, sou eu por mim e apenas isso. Uma aranha peçonhenta pode muito bem me picar durante a noite, e terei morrido, mas morrido bem, pleno. Há um rio aqui, sento em seu leito por horas e me ponho a meditar. Todas as pessoas que sempre disseram: Adoro seu trabalho, adoro sua pessoa! Fico feliz por ter pontuados poucos momentos na cabeça dessas pessoas. Já vivi muito do caos, agora vivo a calma. Levanto do meu pequeno abrigo, e penso: Privacidade. Que palavra maravilhosa. Sou eu, como animal, sem precisar de tangas ou todos aqueles artefatos que as pessoas gostam de romantizar. Sem vergonhas, pudores, nada, somente meu corpo nu, minha cara de mendigo e todo meu cérebro cheio de memórias, que, hoje parecem tao irreais. Sou eu, criatura branca e sem tantos pelos quanto os micos e macacos daqui. Eles sabem que aqui é território deles, eu sou um intruso, mas... Estou me adaptando. Creio que nos próximos dias vou levar umas frutas a uma toca deles, quem sabe posso ter amigos. Se bem que há alguns passarinhos, que, de vez em quando, vem me visitar, eles cantam, eu partilho minhas amorinhas, como eu as chamo (não morri ainda, então elas não são venenosas) e assim convivemos em harmonia, eles são vermelhos e verdes, com olhos dourados, lindos. Ah... tudo que eu mais queria agora, amigos. Pessoas que lessem minhas frases e simplesmente concordassem, ou discordassem, questionassem, me olhassem nos olhos e compreenderiam mais que apenas as palavras, mas todo o meu ser. Em vez disso, tenho parentes da minha raça, vamos aproveitar. Ansiedade? Nunca mais senti. Na selva, você espera os momentos certos como uma cobra, sem se mexer, sem gastar energia a toa. Não, aqui a energia é preciosa. Sinto saudades de minha mãe, mesmo que ela me sufoque bastante em vários aspectos, ela me ama incondicionalmente, e alguns amigos também o fazem. Espero que estejam bem sem mim, se divertindo á vera. Eu aqui, encarando o sol forte na cara e penso: -O que eu sei da vida?
Parece que o sol me responde:
-Nada, e menos que isso.
Bom. Encorajador. Dou um mergulho no mar salgado e frio, geladíssimo. O infinito pacífico, em que há as grandes Fossas Marianas. Já viu o tamanho daquilo? Eu nunca vi pessoalmente, pois deve ser uma escuridão sem fim... Mas as imagens são absurdas. E a biodiversidade que deve ter lá? Peixes iluminados por luz própria, junto com polvos e criaturas que nós nunca batemos o olho. Pobre ser humano, achando que já sabe tudo, há tantas espécies não documentadas, tanto conteúdo não averiguado... Adoro a sensação de molhar os cabelos, sentir cada fio sendo percorrido pela energia da água. E estou com fome, é difícil estar sempre com fome, meu estomago está do tamanho de uma ervilha, creio eu.
Mesmo assim, esse lugar me encanta cada dia mais. É acordar com os pássaros cantando e o mar com sua música tao característica. Olhe para mim, eu morava de frente para o mar, mas mal saía para aproveitar de seus recursos. Não sei o que é escovar os dentes mais. Não há nada em minha sábia ignorância que remeteria a flúor, então apenas jogo uma água do mar, lavou tá novo.
Sinto falta de uma mulher, ou um homem. Alguém. Sinto falta do toque, de beijos, sexo, de sensações boas que o corpo humano é capaz de proporcionar. Não quero nada com os macacos, seria doentio.
E por isso, fico aqui, em paz, em meu santuário, e não estou esperando que me resgatem. Estou vivendo uma vida desprovida de gula, avareza, orgulho, e tudo que contamina o ser humano, todos os sete pecados cristãos e mais todas as amarguras que destroem o homem.
Constantemente, em minha solidão, escrevo poemas, músicas, canto e canto alto, baixo, em todos os tons possíveis. Tento erguer castelos de areia em vão. Desbravo as florestas ralas aqui dessa ilha que mal sei o nome, besouros me atacam e mordem, e lá vou eu, para ``cama`` coçando da cabeça aos pés. Meu maior feitio foi ter conseguido matar uma cobra, tacando uma pedra em cima da cabeça dela, e só de lembrar do seu corpo se contorcendo em agonia, já sinto calafrios. Sim, a mata por muitas vezes não me permite dormir. Aqui se constrói o mínimo de conforto, e então, em um segundo, esse conforto se mostra ilusão.
Queria um livro, nossa, como queria! Como queria simplesmente erguer uma casinha de cimento, olhe a ambição do homem de concreto que necessita afirmar sua supremacia, e deixar lá uma rede, e uma pilha de livros. Além disso, inúmeras comidas, cheiros e especiarias, temperos, uma costela suína grelhada ao molho barbecue, um sorvete de amora com amêndoas, chantilly, e uma cereja no topo, olhe só meus delírios. O que eu faria por algo bem temperado? Por um petit gateau, um bolo de chocolate recheado com calda quente e uma bola de sorvete de creme ao lado... Minha boca se enche de saliva, meu coração acelera, e eu me pergunto: Será que isso é mesmo real? Minha realidade não é a mesma há duzentos dias!. Aqui se come cobra assada, peixe espinhento e algumas frutinhas. Pego um pedaço de madeira oca de minha cabana, tento fazer alguns furos na parte de cima, não obtenho sucesso. Sem facas, sem armas, sem metais, sem forja. Apenas as mãos, os dentes. Para fazer uma fogueira, então? Nunca encontrei algo mais desafiador! Esfregar desesperadamente as madeiras uma a outra, assoprar para a chama não morrer, só de lembrar das noites frias que já passei, me leva arrepios a pele. É isso, se alguém me ler um dia, esse foi meu ducentésimo dia, fazendo a mesma coisa que os últimos cento e noventa e nove dias, mas agora bem mais calmo. É... Meu conselho de hoje é: sejam gratos pelo que têm. Parem de brigar por coisas idiotas. Deixem as pessoas, aprendam a lidar com elas, não é tao difícil.
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