Kintsugi: A técnica japonesa de reparo é uma lição para nós, ocidentais. Quando uma porcelana porventura se parte, repara-se com ouro, e assim é assimilada uma nova peça, a partir de uma anterior. Como na arte, nada é realmente original, mas sim uma apreensão geral do meio e das técnicas diversas atreladas ás personalidades, o que o indivíduo faz é mesclar mais técnicas, experimentar, se expressar através de sua identidade única, e assim evocar objetos-respiros poéticos e subjetivos em materialidade.
Nós, fragmentados pela falta de tempo para poder nos conceber como um todo, diversas máscaras que exigem que sejamos um modelo de comportamento e personificação distinta, nossa atenção dividida em processos do presente, ansiedades no futuro e melancolias do passado, o excesso de informação e estímulo que abafa nossos ouvidos, mentes, olhos, corpos. Muitas vezes, com o excesso de labor e a venda de nossa força de trabalho surgem crises de identidade, momentos de despersonalização, ou de extrema apatia para com o meio e os que nos cercam.
Precisamos de disposição, atenção, cuidado para com nós mesmos para que posssamos, assim como com as peças de cerâmica, costurar nossos afetos, entrelaçar sonhos, entender as esferas dos desejos reprimidos e acatá-los como partes de nós, assim como entender nossas dores, traumas, e desconfortos. Esse ''conteúdo'' pode ser arranjado e rearranjado em narrativas proveitosas para o fluir dos processos psíquicos do sujeito, uma vez que ele se põe, ás vezes com a ajuda do analista/ psicólogo , agente de sua própria narrativa, que pode questionar a forma de apreensão de memória, e assim rearranjar sua estrutura conforme lhe for aprazível.
Mal sabemos se o pensamento que chega até nós em conversas frenéticas entre neurônios atordoados tem, em gênese, nossa intencionalidade como fim e matriz, ou se somente nos foi sugerido durante a última peça publicitária do Instagram, ou quaisquer outras ferramentas midiáticas. A questão para iniciarmos a indagação acerca do ser no mundo é: Como ''estar'' em uma sociedade em que o novo faz-se objeto de desejo, status, associação de meta a ser alcançada, enquanto corpos que naturalmente vão sendo exauridos por um sistema competitivo, acirrado, desgastante e desestimulante são descartados e/ou condenados a invisibilidade, em que suas proprias narrativas são deixadas de lado mediante produtos brilhantes, novos e interessantes? E não apenas estes corpos reificados, tornados objetos de apreciação e consumo, mas objetos, narrativas, mecanismos culturais, dentre outros.
A priori, pensemos em nós como peças, como modos de estar no mundo, não o engessamento que o verbo intransitivo '''ser'' promove, mas uma sucessão de modos, em que o mais leve oscilar positivo pode fazer a diferença em uma semana, ou em que uma crítica breve pode nos abater e tardar a partir de nosso inconsciente. Que pensemos estas peças, como em xadrez, se movem através da seta da intencionalidade de discurso Lacaniana, que consigamos entender que até o mais vil agente na narrativa peculiar de um sujeito, o tão conhecido Outro, é peça principal de seu jogo de xadrez individual. Logo, todo indivíduo passa pela suscessão de vitórias e derrotas no percurso de sua existência, e é claro, uns com ''cheats'' do jogo, outros ''nerfados '' naturalmente pela vida.
A questão é: Todos, a partir de sua perspectiva, são bons, querem fazer o que denomina-se o bem, e talvez um dos mecanismos a serem trabalhados enquanto coletividade seja o diálogo, a conversa, a discussão acerca do que seria este ''bem'', uma vez que as mesmas podem ser as mais distintas: Assim, achando os pontos em comum, pode-se tecer uma ideia do que seria um convívio harmonioso, mesmo sabendo que, na prática, é muito mais complicado conseguir sequer baixar as barreiras de auto proteção para, então, acessar o Outro. Todos sofrem e têm cicatrizes, traumas difíceis de lidar, e é importante ressaltar o quanto essas partes precisam ser trabalhadas, que sejamos amparados e teçamos redes de afeto e diálogo para assim compartilharmos de vivências, daí a importância da arte, a expressão enquanto presença, enquanto escuta.
A competição capitalista por fundos e ascensão social e econômica é uma narrativa que esgarça, desencoraja, desestrutura, e impede muitos de alcançarem seus sonhos. É decerto um privilégio poder conceber que a vivência como seres humanos abarca muito mais que essa corrida repleta de injúrias e infortúnios: abarca conseguir auxiliar o desfavorecido em processos de socialização, implica perceber que os engessamentos e vícios humanos não se estendem á imensidão dos outros seres que aqui vivem, que a acumulação de bens para ascensão social é vazia sem as práticas culturais que lhe conferem a noção de coletivo, de pertencimento, é o experienciar diferentes vivências, narrativas, é a despedida dos que viram gerações se desenrolarem, e o abraçar e acolher os que ficarão quando nos formos.
Reparo de relações, de instrumentos, de seu próprio comportamento: ás vezes, uma peça que se desloca em movimento não pensado, acaba promovendo interpretação errônea do discurso, encerrando por ali o diálogo entre os agentes envolvidos: qual é o custo do orgulho, o custo de admitir a falha humana, o valor do despir-se da máscara infalível que foi concebida diante de um ideal cujo fim mal conseguimos distinguir? Somos tão pequenos, nosso ego e vaidade muitas vezes nos podando, nos impedindo de pedir ou aceitar um singelo pedido de desculpas.
E a procura generalizada por novas pessoas que possam escutar remanejamentos de nós mesmos para que possamos soar mais interessantes, novos produtos a serem vendidos em vitrines de aplicativos nas redes sociais, mas como assim, vendidos? A moeda é o tempo, por isso a necessidade de trocar, substituir, remanejar, antes que sintamos e percebamos que os corpos são frágeis, instáveis, incertos e... humanos, falhos. Não há porque ter culpa em sentir dor, medo, insegurança, frustração, nós sentimos, e podemos lidar com isso de diversas formas. O primeiro passo é perceber, o segundo é entender o que acontece em tais situações, quando o mecanismo é involuntariamente acionado.
''A culpa tratada por Freud se intensifica nos tempos atuais, porque parece que tudo concorre para que o indivíduo se torne livre e feliz. O problema, portanto, só pode ser ele. Não há justifica externa para o sofrimento, embora seja a conjuntura epocal que dê a ilusão de que tudo concorre para que se torne livre e feliz, de tal modo que toda falha será sempre pessoal''. Cristiane Mattar em ''Depressão ou fenômeno epocal?"
Pensar que ainda somos perpassados por uma moral cristã que condiciona e reprime corpos, principalmente no quesito LGBTQIA+, logo, muitas vezes o processo de reencontro consigo mesmo seja rever alguns tabus enterrados nas áreas mais sombrias de sua psique, e mais uma vez, o acompanhamento de um psicólogo é extremamente benéfico para que haja, com a projeção e associação livre, um agente auxiliar-veículo para acessar não respostas, mas perguntas que deixaram-se silenciar com o tempo.
Há muitas problemáticas acerca do ser no mundo, de precisar cumprir com uma ética que complemente e exprima para o ''mundo de fora'', o virtual, esteticamente a ideia de progresso, de bem-estar, de satisfação plena, como se estivéssemos a todo tempo fazendo campanha publicitária de nós mesmos, de nossos corpos. Pensar questões como ''Para quem me visto?'', ''Com quem converso, e o que comunico'', ou ''Para onde estou indo agindo desta forma?'' são questões que levam para dentro de si, e quando entramos em nossos espaços menos desejáveis, na solitude das madrugadas repletas de pernilongos do Rio de Janeiro, por exemplo, é quando nos deparamos com estes nós. E são nós que precisam ser analisados, pensados, talvez comunicados se lhe for proveitoso como processo, etc.
O reparo é um processo demorado, e pode ser auxiliado e direcionado com a análise, com o trabalho de um profissional da área da psicologia, uma vez que o discurso do escapismo, da necessidade de ''reiniciar o sistema'', pode levar a ansiedade generalizada, uma vez que sabe-se o motivo da angústia, mas a agonia é tamanha que não se pode chegar aos mecanismos para trabalhar as questões para combatê-la.
' A singularidade, portanto, não é dada desde sempre, mas precisa ser conquistada, ou seja, não estando pronta precisa ser formada. A ideia de formação tem como pressuposto a angústia do homem sugerindo, deste modo, uma maneira de se transformar e aprender a partir deste caráter. Da indeterminação, característica do nada da angústia, surge o ser-capaz-de, ou seja, o poder se formar. Haufniensis vai designar a Psicologia como a ciência mais apta a lidar com este espaço de angústia, com este interlúdio, uma vez que nesta área não cabe teorizações, mas a sustentação deste espaço onde "tudo é possível".
A catarse, entropia, a rapidez com que mecanismos alienantes podem fornecer válvulas de escape entorpecedoras, que vão reificando e obliterando o filtro crítico dos indivíduos, não lidam com o ponto crítico, o cerne da angústia, pelo contrário, em vez de nutrir e fazer o indivíduo percorrer os galhos e ramos de seu comportamento, busca em certos mecanismos cortar-se, podar-se, justamente para crescer novamente, o conhecido buscar remediar a consequência, desviando-se da causa.
Como reparar o outro? Primeiro, reparando a si, buscando escutar os sons de seu corpo, respeitar os próprios limites, escutar as vozes que sussurram baixo quando tomamos alguma decisão, estabelecer registros para auto assimilação e reflexão. buscar terapia, lembrando que cada cidadão, em um sistema ideal, deveria ser provido de auxílio em saúde pública no que concerne saúde mental.
Depois, buscando apreender o entorno, tentando captar os pontos de tensão , ruptura e fricção em uma sociedade apática e angustiada, o auxílio pode ser fornecido em micro-doses: um simples puxar de conversa, um olhar de reconhecimento que afirma: vejo que você está aqui, que você existe. Uma vez que nos preocupemos com o bem-estar do outro, estabelece-se uma rede de apoio orgânica, por vezes velada, ou negada, mas que, por fim, materializa-se sobre o pretexto de que todos esses indivíduos fragilizados, tensos, ansiosos, por trás das máscaras e performatividades alheias, anseiam pelos mesmos fins: aceitação em coletivo, segurança para si e seus próximos, conforto, afeto, [ a multiplicidade de narrativas e interpretações do que nós denominamos] amor. Até mês que vem!