Cena um
Marília e Joana caminham aleatoriamente pela zona portuária do Rio de Janeiro, caminhando por entre as zonas ligeiramente abandonadas e as que foram selecionadas para ``revitalização``, quando percebem uma área que até esse momento era um armazém abandonado, e agora ocupado pelos sem-teto, repleta de placas e setas indicando que em breve aquela área seria um shopping.
-Tá de brincadeira com a minha cara- diz Marília, incrédula- mais um!
-Que foi? Retruca Joana, franzindo o cenho para Marília.
-Mais uma vez o cenário urbano se digerindo - Começa Marília- marcas do passado sendo levadas, patrimônio histórico perdendo toda sua importância, toda essa cultura do ``agora`` me enche de ansiedades e me preocupa , Joana... o que vai ser desse shopping daqui a cinquenta anos? O que ele vai simbolizar?
-Tudo é propício ao abandono mesmo, Marília! Se acostuma, é a vida na cidade, competição até entre os prédios, informação vem e vai, aceleração. A cidade em si é um desapego, querendo ou não.
-Eu sei, Joana, mas não vê que não tem mais para onde fugir? Estamos saturando nosso próprio lar, daqui a pouco só vão existir essas selvas de concreto que nos apertam, nos causam ansiedades em nossas cabeças e canceres nos pulmões, farmácias, academias e escritórios que sobem até o céu.
-É, essa indução ao consumo extrema sempre me incomodou, sabe. Todo dia é um banner novo anunciando outro celular muito mais moderno que a versão anterior, parece que eles estão se encaminhando para um ideal de tecnologia inalcançável, e nós estamos tentando competir nessa corrida, tentando nos manter atualizados, atuais, acompanhar um ritmo de uma sociedade hiper acelerada, frenética.
-Sim, é exatamente isso. Assim como temos pilhas de shoppings, vamos ter pilhas de lixo, celulares acumulados, junto com as embalagens de todas as comidas rápidas, as latinhas, as perucas não aproveitadas, os aparelhos tecnológicos obsoletos, os relógios que pararam, as carcaças de prédios que não receberam mais investimentos...
Marília encara a placa pintada de amarelo e vermelho vibrante, olha para o céu, com uma névoa espessa de poluição pairando acima da cidade, e suspira.
-E lá vai o cidadão para o matadouro do consumo...
-Você deveria escrever poesia, Marília- Comenta Joana, rindo de uma maneira quase melancólica.
-Mas é verdade!- Retruca Marília, ligeiramente indignada pela não compreensão de sua profunda crítica- Pensa em como as pessoas vão ser condicionadas, atraídas como insetos pela luz, pela ideia de felicidade delas sendo projetadas no comércio, sonhos e ideias vendidos e sendo perseguidos até a morte, um caminho sem fim, uma eterna espera pelo gozo, uma angústia que te condiciona por escadas rolantes, te leva a lugar nenhum, sobe, desce, sem precisar mexer um músculo, é corpo parado, corpo espectador que é manipulado, lhe é vendida a ideia de protagonismo, e como atuar nesse teatro contemporâneo e se afirmar como cidadão?
-Consumindo- Responde, triste, Joana, olhando para baixo, para todas as embalagens que estão na calcada, invadindo os trilhos do Veículo Leve sobre trilhos. Eles, que voam pelo vento, e se encerram na baía de Guanabara, para serem decompostos em duzentos, trezentos anos, plásticos e metais que vivenciariam muito mais que os pobres humanos.
Ensaio dois
-Nem acredito que eles venderam esse terreno enorme tao valorizado antigamente por essa quantia ínfima para a gente.
-Nem eu, Renato, fizemos a melhor coisa, não perder tempo, revitalizar aquele espaço no centro.
-Está cheio de mendigos e viciados em narcóticos e craque lá, Carlos, o que vamos fazer?
-Mandar o Jarbas e o Bruce mandar os caras se mandarem, óbvio. Responde Carlos, simplista.
-Mas Carlos, tem famílias inteiras lá.
-Vamos mandar o Jarbas e o Bruce mandar as famílias se mandarem.
Renato suspira, sua ideologia moral e seus valores entram em conflito por alguns segundos, mas depois ele abstrai, pensando em todo o lucro que irá receber com aquele novo estabelecimento.
-Vamos botar abaixo toda aquela velharia, já falei com alguns políticos, eles se desfizeram de uma papelada que eu desconfio muito ter sido amarelada com grilos, patrimônio histórico vai ficar no acervo digital do Rio Mídia cidade digital.
-Me disseram que estavam até confeccionando um modelo em holograma! Ri Renato, imaginando a ideia de um ``Rio antigo`` girando em laser azul. A ideia lhe agradara bastante.
-E vamos fazer mesmo um shopping exclusivo, contemporâneo, jamais presenciado por qualquer terráqueo? Pergunta Renato, cheio de expectativas.
-Óbvio que não, besta. Vai ser como todos os shoppings, mas a gente vai dizer que é exclusivo, por uns adornos, dar uma camuflada na estrutura básica e esquelética de todo centro de consumo, promover algumas marcas, já tenho contatos com donos de empresas que mal veem a hora de se fincar no nosso solo recém polido, cinza e liso.
Cena três
Estão os dois empresários, Carlos Alberto e Renato Falcão sentados lado a lado, na mesa polida de madeira de lei, e do outro lado desta, os designers de interiores, paisagistas e arquitetos do projeto do novo shopping da praça Mauá. Além desses, assistentes de merchandising, designers, dentre outros.
-Então- Inicia Carlos Alberto, objetivo, entrelaçando as mãos- Queremos um modelo de shopping contemporâneo. Vamos botar obras de arte nas paredes para que de a ideia de...
-Liberdade? Sugere um designer de interiores, meio inquieto, com a perna batucando incessantemente.
-Não, liberdade não!- Exclama Renato, desgostoso. -Liberdade lembra anarquismo e quebra-quebra. Não. Os consumidores e passantes precisam se sentir sufocados
Ouve-se uma tosse aleatória do outro lado da mesa, e um dos arquitetos diz:
-Perdão, o senhor disse sufocados?
-Acalme-se, Anselmo- Comenta Carlos - É apenas um sufocado pelo comércio, aquele empurrãozinho que o cidadão de bem precisa para movimentar essa magnífica engrenagem do capitalismo.
(Um empurrão para que o lembre de seu lugar no fundo do abismo do capitalismo consumista o acorrentando, escravo da obsolência programada...) Pensou Renato, com ambição.
-Continuando, cavalheiros- segue Carlos Alberto - Estávamos querendo implementar algo simplesmente inovador, nunca visto antes em shoppings.
Um murmúrio geral na sala, olhares confusos.
-Vamos botar relógios. Todos eles com maravilhosas obras de arte de nossos artistas brasileiros, e sem ponteiros. Há algo mais inovador que isso?
Um paisagista estende a mão e, timidamente diz:
-Ok, mas... sem ponteiros? qual a funcionalidade disso?
Renato, ultrajado, responde:
-É extremamente funcional! Lembra que o tempo do cidadão circulante é estético, e estética significa implementar sua aparência, e implementar sua aparência significa CONSUMIR MAIS para se adequar mais a estética padronizada e normativa de nossa publicidade e mídia.
-Palmas pela sua ideia, Renato- Comenta Carlos, emocionado- Parabéns , meu colega. Ele bate palmas, olhando cheio de expectativa para o rosto ligeiramente corado de Renato.-Viva o relógio pós-moderno.
-Agora o motivo pelo qual chamamos os paisagistas- Anuncia Renato- No meio do Shopping, confeccionaremos a área Floresta Atlântica. Com palmeiras, barraquinhas em que vendam, podem acreditar ou não, frutas! Totalmente contemporâneo, é o animal vindo a tona no homem que se diz civilizado, é a lembrança do passado, é o Fast-Jungle!
-Para que motivos, lhes indago, camaradas- Emenda Carlos- O cidadão precisará ir até os confins da zona oeste, sul, e hoje enfrentamos uma crise nos transportes, nosso venerável prefeito Bispo mestre Crivella nao ajudou com a frota dos ônibus, e ainda tem a crise.
-Ah, a crise... Reclama um arquiteto, passando os dois dedos pela testa, em um movimento de pinça.
-Fast Jungle. Cobraremos para o cidadão sentir nossos climatizadores e aromatizadores, arranjamos uma parceria com o Glade Toques de Frescor, assim que eles saírem do protótipo de floresta, receberão um adesivo de um Aerosol feliz, cem porcento biodegradável, parceria Cariocaping e Glade. Tudo certo, merchan?
Os homens responsáveis pela propaganda e como ela é distribuída no shopping assentiram silenciosamente.
-E o ar condicionado? Pergunta Renato, cheio de expectativa.
-Dezoito graus, chefes- Responde o engenheiro termo-elétrico- O suficiente para que o consumidor pense que o ambiente fechado é infinitamente mais agradável que o sol de arrancar o couro cabeludo do centro do Rio.
-Perfeito, perfeito- Continua Carlos -E se sentir frio, pode comprar um delicioso chocolate quente em um de nossos quiosques mais próximos.
Com um leve pigarro, Carlos então se prepara para falar:
-Errr... tragam aqui os artistas. Ele olha para baixo, como que envergonhado de pronunciar tal substantivo.
Os seguranças do recinto, Jarbas e Boris, enormes e sérios, entram primeiro, seguidos por dois homens e duas mulheres que pareciam mal nutridos, exasperados, desprovidos dos ternos e formalidades que todos lá apresentavam.
-Boa tarde, damas e cavalheiros!- Diz Renato, que sempre simpatizou mais com os que se denominavam artistas.
Os artistas olhavam ao redor com repugnância e estranhamento, todas aquelas luzes e ambientes polidos, e nada disseram por um ou dois minutos.
-Vamos aos negócios, então- Começa Carlos, impaciente. -A ideia, como já enviado por e-mail, é que na frente da fila de espera de cada elevador, em cada respectivo andar, tenha uma esplendida obra de arte para que o mesmo não se sinta explicitamente subjugado e ofendido apenas com a ideia de ter que esperar atrás de outros indivíduos. Ele pega alguns papéis impressos e entrega aos artistas.-Aqui estão os termos e as limitações dos trabalhos requisitados.
Os artistas não revelaram expressão alguma. Em fato, Carlos se questionaria se algum deles estivesse de fato prestando atenção.
-Como assim, toda cor precisa ser tom pastel? Perguntou Álvaro, um dos artistas.
-Precisamente- respondeu Carlos- o pastel vai ser contraste com o neon berrante de algumas lojas que pagam a Taxa do Neon.
-Taxa do Neon? Pergunta Álvaro.
Bruno, seu colega, que se encontrara ao seu lado, tentou suprir o riso.
-Sim, mais eletricidade, mais atenção puxada para esse estabelecimento, ele precisa pagar ínfimos juros a cada estabelecimento pelo ato de convergir o olhar.
-Favor não esquecer, pessoal- Renato se levanta, fecha os olhos, respira, quando vê que atrai todos os olhares, continua:- Nós aqui vamos inserir pequenos dispositivos de microcâmera wireless em mais de trezentos pontos do shopping. No final das montagens e contagens de olhares, os pontos em que obtivermos mais olhares serão posteriormente vendidos e, em suas imediações serão instaladas telas e Outdoors móveis; então , se desejarem, a prova para o mediador de olhares será realizada na próxima quinta-feira.
-As pinturas precisam ser... precisas- complementa Carlos.
-Geométricas. Diz Renato, desenhando um quadrado no ar.
-Lembrem as pessoas de que elas precisam consumir- acrescenta um designer que só ouviu as últimas três frases e rabiscava no canto de sua planilha- mas não de maneira que venha a soar pejorativo.
Cena quatro
-Professora- estende a mão Lúcia, ansiosa- Eu meio que não entendi muito bm esse conceito de espaço lixo.
Joana alves de santos, professora do Colégio de formação urbanística para jovens, responde:
-Jogamos tanto lixo fora, que uma hora não disporemos mais de meios para dar fim a todo esse entulho, e isso se dá na arquitetura também!
Lúcia passa a mão no queixo, tenta estipular teses em sua cabeça, e diz:
-Mas vamos jogar prédios fora?
O resto da turma ri, e Joana se apressa em dizer:
-Não literalmente jogar fora, mas apagar e acender resquícios de civilização, não tem mais espaço, não existe mais novo, o ''jogar fora'' é a demolição, o abandono, até que o espaço volte a ser , de alguma forma, interessante, para que assim algo seja construido no lugar, com a ilusão de ''novo'', mas é sempre essa ruminação eterna, já saturamos muita da capacidade que o próprio espaço aguenta, a um ponto de nem as pessoas aguentarem mais.
Cena cinco
Poema sobre Junkspace
Cena seis
Monólogo em uma peça sobre o museu nacional, em 15/07/2018
-E o museu nacional queima, mais de 20 milhões de itens danificados, 200 anos de história incêndio abaixo. Lá se vai história, lá se vai marcos desprovidos de marcas publicitárias, lá se vai conteúdo imensurável, de valor incalculável, mas não era rosa e azul pastel, não dispunha de curvas confortáveis ou estímulos rentáveis, não favorecia lucros, terreno insustentável em si. Faltou incentivo, faltou estrutura, mais shopping, menos cultura. Mais copiar, menos criar. Menos terreno para se cultivar, mais para se acumular, menos para se pensar, mais para consumir. Um dia, essas edificações podem todas sumir, quem irá lembrar? Da estrutura, sobram ossos, vão aos poucos ruir. Quem tem poder vai chegar para os curvados e dizer: vamos pensar, é simples o que fazer: Vamos vender, facílima questão. Levar abaixo, demolição. Depois, talvez, um parque de diversão. Um museu, que ideia, como podemos assim, manipular a plateia?
Passado? Apagado. Ditadura, não aconteceu, colonização, não aconteceu, autoritarismo, não aconteceu, nossa história, nossa arquitetura, nossa cultura, derrubem tudo e ponham shoppings no lugar. Shoppings, onde poderemos controlar quem irá transitar. Estado falido, finge que é dono, não dá verba, abandono, mais que se importar. Empreiteiras, empreitadas, quem consegue se manter no poder? O que consegue se manter no lugar? Não adianta suplicar, senador não corresponde, não adianta implorar, governador se esconde. Fugir? para onde? Templos religiosos erguidos, é o tecido a se refazer, templos religiosos destruídos, há toda uma seleção, podem ver. E aqui está uma pergunta em que encerro, e a indago em toda aula, a cada manhã: Como pode um povo ter ideia de nação, se se apaga o passado e vangloria o amanhã?
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