O primeiro romance brasileiro da história foi escrito por Maria Firmina dos Reis, mulher negra. Por que hoje em dia ainda sao raras escritoras negras e periféricas que representem sua própria realidade como ela é, em vez de homens brancos de classe média/ alta que escrevem sobre elas em terceira pessoa, muitas vezes deturpando, objetificando, e descaracterizando sua cultura, romantizando e estereotipando a vida e os hábitos da mulher ``de periferia``?
Em um território de enorme intolerância religiosa como o Brasil, é urgente a necessidade de expressao e caracterização das religiões afro-brasileiras, uma vez que elas fizeram e fazem parte da cultura brasileira, por mais que haja a supremacia do catolicismo, é vital que haja o registro poético e literário dessa religião rica, com termos, culinária, vestimenta próprios.
O ex ministro da igualdade racial, no dia primeiro de setembro deste ano, critica a falta de representatividade negra na academia brasileira de letras. ``É um centro de homens brancos``.Maria da Conceição Evaristo de brito, aos 71 anos poderia ter sido a primeira mulher negra a participar da academia brasileira de letras, lugar de predominância masculina e branca, lugar de academicismos, rígido.
O negro brasileiro sempre fora retratado de forma quase miserável, escravos, lacaios, e diversos personagens objetificados e deixados de coadjuvantes. O que é novo em Conceição, o que é contemporâneo?
O negro é protagonista, a literatura afro-brasileira germina, cresce e dá muitos frutos, apresentando e expressando traços marcante, únicos.
Ao dar voz a mulher negra de periferia, Conceição surge dando o protagonismo ao personagem que, da maioria das vezes, era tido como ``á margem``. Suas histórias nao sao fábulas romantizadas e encantadas, e, palavras da autora, uma história de ninar para a casa grande.
É escrita para incomodar, perturbar, tirar o leitor da zona de conforto.
Evaristo lida com afetos, expressões poéticas, neologismos, novos arranjos entre substantivos, relacoes humanas, sejam elas fraternais, matrimoniais, concorrentes, há o diálogo de suas personagens para com elas mesmas e o meio. Conceição nao mede palavras, nao atenua realidades verossímeis pelas quais suas personagens passam, há violência, há dor, em forma expressa através de realismo entrecortado por poesia. Há um mar de ansiedades, vivencias, paixões, dificuldades, em que o leitor é jogado e passa a acompanhar e testemunhar, tudo acompanhando infindável sensibilidade.
Como se dá a resistência dessas autoras, que jamais foram tao apoiadas quanto o escritor branco acadêmico padrão? Editoras de pequeno porte, Slams, poesia cantada (RAP), eventos literários, dentre outros, foram formas de dar voz a essas ``minorias`` que representam maiorias em termo de etnia brasileira.
Evaristo traça cenários de maneira minuciosa, desde a poeira que levanta pelos pés da menina, até as roupas brancas estendidas no varal, cenário deixa de ser paisagem, é também personagem, interativo.
Evaristo questiona, traz de maneira inovadora a desterritorializacao, saber o ponto do mapa em que ocorrem as estórias é irrelevante, uma vez que é um contexto global, humano, pode se passar tanto na próxima esquina, quanto em algum país vizinho, até no outro hemisfério, por exemplo:
O conto de Di Lixao, garoto que habita esse cenário decadente de sujeira e doença, poderia se passar em qualquer lugar, visto que depósitos de lixo sao encontrados em quaisquer cidades grandes, anexados, deixados a deriva. Ele está doente, e assim padece em meio aos sacos de lixo.
Evaristo unifica culturas, credos, mostra o cenário de perto, uma globalização literária, qualquer estrangeiro poderia facilmente se emocionar, se sentir afetado, atingido, pela sua obra. Ela denomina seu ato de escrever e ser lida, de escrevivência, dialogando com a autoficcao, seja de histórias que ela ouviu quando pequena e as alterou ligeiramente, histórias as quais se recorda e, porventura as remolda.
Evaristo é pós-moderna, contemporânea, pois trabalha questões atuais como o individualismo, pluralidade, por vezes mistura o real e o imaginário, trabalhando com o imaginário de suas próprias personagens, seus anseios e sonhos quase que destacados da realidade vigente, como em ``Zaita esqueceu de guardar os brinquedos``, como é ingênuo o universo infantil, como é acoitado pelas marcas da realidade pesada da vida, tudo que a garotinha procura é sua figurinha favorita, e ela se depara com a irma morta no final. Podemos também citar a efemeridade e o hedonismo do pós moderno, em um momento sua irma estava viva, no outro nao, e sua simples mas fiel busca pelo prazer perdido em forma de figurinha infantil. Outro exemplo de imersão em ``realidades paralelas infantis `` é em ``Lumbiá```, em que a criança apenas desejava se apossar, se sentir na presença de uma representação de jesus cristo, esse seria seu momento de júbilo, de prazer diante de sua árdua vivencia. Evaristo muitas vezes lida com o indivíduo pós moderno, fragmentado, repleto de dúvidas quanto a sua existência, esse fator enormemente expresso em Ponciá Vicencio(2003). Ricouer cita: ``O indivíduo pós moderno é de natureza confusa, indefinida, plural, feita com retalhos que nao se fundem num todo``.
O próprio papel da mulher é totalmente repaginado. Lhe é dado o protagonismo, matriarcas, maes que fazem papel de pai, independentes, amorosas e empáticas, firmes, o que é uma ``novidade`` no mercado brasileiro, visto que inúmeros romances citam a mulher como mero acessório, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, por exemplo: ``Ela era bonita, mas coxa``, a personagem da mulher nao vai muito além de sua aparência física. Evaristo trabalha maes batalhadoras, sofredoras, de um ponto de vista humano e digno, como se a própria estivesse se dispondo de inúmeras máscaras e pudesse interpretar os papéis das personagens. Evaristo trabalha a linguagem, por vezes usando a linguagem oral, muitas vezes criticada pela academia, como por exemplo o próprio nome do título: ``A gente combinamos de nao morrer``. Ela, assim como muitos outros autores contemporâneos, rompe com padrões textuais rígidos e academicismos, dando espaço para a linguagem falada, a linguagem das ruas, das favelas, das periferias.
ai cansei
Nenhum comentário:
Postar um comentário