terça-feira, 11 de julho de 2017

História da minha mãe

Tráfico de pessoas- Um problema real, atual e precisa ser discutido
Pleno século vinte e um. Máfias e grupos clandestinos ainda conseguem ,através de seus recursos, capturar pessoas, especialmente mulheres, até mesmo garotas, para a prostituição. O tráfico de mulheres é crime na maioria dos países, mas isso não o impede de acontecer. Muitas vezes o sujeito enxerga uma maneira de persuadir a vítima, e a mesma cai, por estar muito frágil para reagir, muito fraca para enxergar, que o que parece salvação pode ser a ruína e a perdição.
E elas estão em todos os lugares. Meninas totalmente desorientadas e desprovidas de conselho emocional, em um ambiente familiar fraco e eu sinto que preciso passar uma mensagem adiante. Sinto que preciso mandar esse recado, dizer a elas que essa “rota de fuga” mágica proporcionada por seres bons é, na maioria das vezes, uma mentira.
Mais que isso. Não direciono-me apenas para garotas frágeis que um dia podem passar por isso. Quero mandar essa mensagem para quem já o vivenciou, assim como eu.
Quero dizer a todas que já sofreram, como eu sofri, que libertem-se desse julgamento interno, que deixem de se esconder por trás de cortinas e tentem esquecer seu passado. Elas tem medo de serem julgadas, humilhadas, por terem se envolvido em algo tao perigoso, algo que a sociedade vê como sujo.
Eu sobrevivi a isso, a prostituição, a tortura, ao medo. Eu não tenho vergonha do que eu passei, e quero passar essa mensagem, para que essas pessoas percebam que no final, elas foram fortes, elas aguentaram até o fim, e que isso não é motivo de vergonha.
Eu preciso dizer isso a elas. Alguém precisa abrir os olhos dessas mulheres, pois a sociedade as julga tanto, sem nem saber o que aconteceu, ou porque aconteceu. Eles julgam e apontam dedos, gritam e ofendem, e a pessoa começa a se esconder e se fechar em sua própria escuridão. Preciso dizer a elas para pararem de se culpabilizar, que não são sujas, que não são repugnantes, que precisam se amar do jeito que são, se libertar de tudo isso.
Por causa disso, aqui estou eu, e aqui está minha história: Eu era uma pequena garota vivendo em uma casa feita de barro, sem privacidade, com uma família turbulenta e violenta, brigas todas as noites, pesadelos. Todo dia eu acordava e pensava, eu gostaria de sair desse lugar terrível e cheio de fracassados, é o meu maior sonho.
 E então, como em um passe de mágica, surge um homem maravilhoso, alto, de olhos azuis e corpo torneado, inteligente, um dos homens mais lindos que vi na minha vida. Ele se aproximou de mim. Me achou bonita, eu com meus 21 anos, cabelos pretos espessos, pele branca perfeita, boca sempre com batom vermelho. Um corpo muito bonito para alguém que conseguia apenas sentir dor, anestesiada de quaisquer outros sentimentos. E lá foi ele, conheceu minha casa de condições precárias, analisou cada detalhe, cada móvel, cada brecha na parede, e, mais importante, meus pais. Olhou para eles e viu, pelos seus rostos, que realmente eram pessoas desprovidas de esperança, os fracassados que eu tanto abominava, e ele sabia que nunca viriam atrás de mim. Um dia, simplesmente me ofereceu uma maravilhosa proposta. Me estendeu a mão, para vivermos em um mundo de fantasia, em outro país. Eu nunca perguntei. Eu nunca questionei. Ele era a solução dos meus problemas, iríamos embora para sempre e tudo seria paz. Ele era meu marido perfeito, e eu , a vítima perfeita. Mas o casamento durou apenas um dia. Já tendo saído do meu inferno gelado,  esse lindo marido de olhos azuis transformou-se em fera, um monstro, e quando ele viu minha cara de espanto e medo, era como se dissesse:
-Por que a surpresa? Foi você que me chamou, você que quis vir comigo, você que me atraiu.
Em um momento, ele me olhava nos olhos e dizia elogios e como ele me amava. No dia seguinte, eram apenas insultos, o quanto eu não valia nada, que eu deveria ser agradecida por ele ter me tirado daquela favela, pois ele estaria me transformando em alguém decente, uma madame. Esse lindo homem, na verdade, tinha amigos, colegas, e juntos eles formavam uma máfia organizada, vários pretendentes para que eu escolhesse o que mais me apetecesse.
Cheguei no país estrangeiro sem visto, eles tinham contatos suficientes para não precisar de burocracia. Pegaram meu passaporte, para eu não conseguir fugir, e lá estava eu, confinada em um apartamento, com mais várias outras mulheres. Ficávamos trancadas o dia inteiro, e eles usavam nosso tempo livre para nos torturar psicologicamente.
Tentaram estabelecer um tipo de terror psicológico e físico, uma lavagem cerebral. Eles queriam induzir-nos a trabalhar para eles, dizendo que se não o fizéssemos , não saberíamos se acordaríamos vivas ou não. E assim, eu entendi que, para não ser morta, precisaria jogar o jogo deles. Agradecia a eles, e dizia o quanto estava grata por tudo que faziam por mim e se eu poderia logo trabalhar para poder retribuir financeiramente tamanha bondade oferecida por eles.
 Fui trabalhar apenas com a roupa do corpo, e assim esse foi o início de um árduo trabalho que durou dois anos.
O pior não era ter que transar com vários homens em uma noite, mas sim acordar e saber que eu era desprovida de liberdade. Eu, como um animal, uma propriedade, tinha donos, proprietários e minha razão de existir era sustenta-los financeiramente.
A única coisa que eu fazia para conseguir suportar toda a pressão e a dor, era beber até perder os sentidos, dançar, e ás vezes usar drogas, mas meus “donos” não me queriam que eu gastasse o dinheiro deles com substancias ilícitas, por isso, por causa de uma simples avareza, eles impediram que eu morresse de uma possível overdose de drogas.
Fiquei lá por dois anos. Mas eu nunca deixei de acreditar na humanidade das pessoas. Eu acreditava que ainda existiam pessoas boas. Eu acreditava que, um dia, um homem com coração bom chegaria e me tiraria de lá.
E isso aconteceu.
Um homem chegou, me salvou dos monstros, forjou um passaporte falso, e eu estava totalmente quebrada emocionalmente. Tudo que eu queria, tudo que eu pensava, era:
-Preciso fugir, preciso sair daqui, eles não podem me achar de novo.
Para onde eu iria agora? Precisava ser longe e em outro continente. Escutei “Brasil”. Apenas sabendo que era em outro continente, já estava aliviada, estaria muito longe dos monstros que me capturaram, poderia dormir sem medo de abrirem a porta em solavanco, aos gritos e ameaças. Queria ir para lá, sem ao menos saber como era o país, como eram as pessoas. Eu só queria fugir.
Sinto que o Brasil me escolheu desde o primeiro momento. Ao tocar o solo carioca, em um dia de sol em Abril, os raios de sol aquecendo meu rosto, eu me senti, pela primeira vez, livre. A cada segundo que eu passava no Brasil, me sentia renascendo.
Essa história não é para a pessoa escutar e ficar calada. É para ser passada adiante, para que fiquemos alertas, pois isso é real. Pode acontecer com um vizinho, um amigo, um familiar, ou até com você. É muito sério e o perigo pode estar muito mais perto do que se pensa. E é por isso que eu quero passar essa mensagem.

Mas a ela não é apenas para quem é julgado. É para quem julga, para desfazer seus preconceitos acerca de uma história desconhecida de sofrimento e dor.  É para quem nunca ouviu falar sobre o assunto, quantas pessoas realmente sabem o que é tráfico de pessoas? Na escola, no trabalho, no ambiente social, esse assunto é evitado, um tabu. E, finalmente, para qualquer ser ciente refletir e ponderar sobre a crueldade humana.

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