segunda-feira, 11 de novembro de 2019

costela de porco

estava eu indo comer uma costela de porco, tão tão que não lhe cabiam adjetivos a altura. Olhava para o pedaço que porco, que ao meu ver tinha parado de ser porco há éons. Uma vez que não vi o cara com a faca enfiando-na fundo no pescoço inexistente do porco, escutando seu chiado infernal, a dor que ele sofreria em seu guincho final. Não vi o porco sendo alimentado com restos de outros porcos, rolando em suas próprias fezes em um ambiente confinado com mais três mil porcos. Não vi os olhos do porco, primeiro brilhantes, em um desejo inconsciente de finalmente se locomover daquela fossa atroz de cheiro insuportável. Não senti esse cheiro insuportável, pelo contrário, sentia cheiro de gordura na brasa e carne defumada, molho barbecue, tomate, sal, molho inglês... e já ia imaginando o gosto e a textura da carne quente se dissolvendo na minha língua conforme o sabor agridoce do barbecue explodiria na minha língua. Eu recobro os sentidos, estou meio atordoada, onde estou? Vejo meus amigos ao redor de mim, pelados, de quatro. Que porra? Eu estava em algum lugar antes, onde... Olho minhas mãos, estão sujas com algo gosmento. Aproximo do meu nariz, nada como cheiro de bosta. Não consigo olhar para o céu, minha corcunda está muito torta. Aliás, minha barriga está pesada, não consigo respirar direito. Tento falar com Júlio, meu colega a meu lado, que está pelado com os braços enfiados em cocô e lama.
Acho um resto de uma cenoura. Ela está meio suja. Cheiro, não gosto do cheiro. Como mesmo assim.
-Ei Júlio, sabe onde a gente tá?
-A gente tá no nosso humanodouro, ué.
-Ué. Penso eu. Tento sentar nos meus calcanhares, caio pro lado.
-Júlio, por que eu não consigo sentar no chão?
-Porque você está muito gorda.
Olho pros meus braços, há montanhas de gordura que vão se desprendendo dos ossos frágeis, e pendendo como asas molengas.
-O que eu faço, Júlio?
-Come mais, ele responde. Júlio vem pra cima de mim com uma cara estranha, pergunto:
-O que foi, Júlio?
E ele, vindo em minha direção, diz:
-Eu vou transar com você.
E eu digo:
-Eu não, não tô afim. Vou me afastando na direção oposta, e ele me segue.
Olho para todas as outras pessoas, e agora percebo que têm outras pessoas. Algumas estão copulando, algumas contra as suas vontades, algumas estão cagando e copulando ao mesmo tempo. Sinto uma mistura de nojo, repulsa, e, de certa forma, fico ligeiramente confortável apesar de tudo.
Mas vou tentando me enfiar na multidão de corpos nus.
Alguns porcos vestidos com uniformes adentram o recanto dos humanos pelados. O porco cansado não fala, só grunhe, língua de porco, vai saber. Tento escapar dele assim como todos os humanos, mas ele tem uma coleira anatômica que enfia no meu pescoço e me arrasta pra fora a força, ele bípede, eu quadrúpede.
Fico olhando pro chão e penso: tá saí daquela merda de sarjeta, será que ele vai me matar agora? puts eu bem não tinha pensado que na real ele tá me levando pra me maTAAAAAAAAAR CARALHO QUE DESGRAÇA ESSE FILHO DA PUTA ERROU O MEU PESCOÇO, A MINHA PELE TÁ MEIO DEPENDURADA, FRATURA EXPOSTA, PAREÇO UM CHAFARIZ SANGRENTO, ELE ACERTOU O NERVO NESSA DESGRAÇA, A DOR É LACINANTE E ME FAZ QUERER DESMAIAR mas não consigo desmaiar porque ainda estou escutando e isso é o pior de tudo, sinto o meu suor no clima de 40 graus se juntando com o sangue, sinto como se o golpe estivesse durando três horas, só penso por favor me mata logo acaba com isso, será que isso era o que alguns chamam de tortura?
 o cara tá super nervoso e eu também, eu tento correr, mas ele me prendeu muito firme nessa coleira, o meu sangue jorra e eu o vejo brilhando, uma cascata escarlate. ----=AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAH- Agonizo eu, não sei quanto tempo essa agonia vai durar. Minha cabeça pode explodir a qualquer momento, Me dá uma droga, pelamor, tento chorar não sai uma lágrima. Percebo que o porco foi fumar um cigarro, ele volta. Mija do meu lado, sinto sua urina quente em minha perna de trás, que se junta ao sangue e ao suor, ele pega no machado de novo, por favor acerta- silêncio, tudo fica preto, fim, fim?
Não, fim não, a dor continua reverberando na parte de trás da minha cabeça, o sofrimento encarcerado no meu estômago, meu intestino em autofagia diz : NÃO ENFIA ISSO NO TEU CORPO!
Eu olho pras costelas, são costelas humanas.
Eu jogo os talheres pro lado, lambuzo meu rosto no molho barbecue, como minha própria carne. Levanto da cadeira pra ir ao banheiro, meu tronco despenca pra frente, as costelas realmente eram minhas, alguém me distraiu enquanto eu caía no sono na churrascaria.
Sem estrutura óssea, agora meço um metro e vinte, vou precisar de uma estaca como aquelas que botam trepadeiras, porque estou sem tronco. Acontece. Desiludida, procuro os ossos que acabei de saborear para pelo menos chupar o resto de gordura, a mesma minha gordura que me protege do frio, lambo os beiços, choro um pouco, e rio.

sábado, 9 de novembro de 2019

O gozo do outro

o que se goza é o seu gozo ou o gozo do outro?
até que limites vai o seu gozo? A partir de qual momento gozar só torna-se banal?
É possível gozar só eternamente e assim satisfazer suas necessidades, sem um contentamento geral?
Gozar no amplo sentido de fornecer prazeres devido a expectativas e metas que outros atribuem a sua persona, a idealização de persona na cabeça  das mesmas. 
É possível não ter responsabilidades morais, físicas, estar desprovido, mas ao mesmo tempo transformar o gozo em ofício? Parece que foi isso que andei fazendo nos últimos tempos.
Por não poder gozar coletivamente em um bando, procuro artes marciais. Para poder gozar artisticamente, um teatro. Talvez devesse procurar mais esses coletivos, me sinto flutuando em uma esfera insípida, enquanto quero me aproximar de um cardume e vagar por aí. Precisava escrever o conto para a disciplina, mas... talvez eu escreva. haja mão.