Ela estava em casa, e seus amigos iriam se divertir. O dinheiro era contado, e a diversão era incerta. Botara suas melhores roupas, uma calca preta de veludo e uma blusa vermelha decotada. Em contraste com sua pele branca, aquilo lhe parecia atraente aos olhos externos. Mas nenhuma maquiagem botou, por preguiça, por não gostar tanto de tinta em suas pálpebras e pele. Disse aos amigos que estaria sem celular, não conseguiria se comunicar com eles direito.
E lá foi ela, noite adentro, apenas com um dinheirinho, chave de casa e seu corpo brutal. Sem salto, sem maquiagem, sem joias, uma mulher simples.
Encaminhou-se para a floresta de prédios decadentes, bueiros abertos, mendigos cantantes e cerveja derramada. As estrelas eram encobertas pela poluição, o barulho dos carros lhe rasgava a calmaria, o engarrafamento inundava a paisagem com luzes vermelhas, brancas e amarelas, e lá estava ela, tao pequena no meio de uma imensidão cinza.
Chegando ao local, avistou um homem enorme, que fazia sombra nela mesmo que o brilho presente fosse da lua. Ele abriu a boca e começou a falar coisas estúpidas, e ela seguiu seu caminho.
Mas, primeiro, era necessário comprar uma garrafa de algo. Alguma coisa para realizar o famoso ato do "esquenta", e lá foi ela para a fila. Na fila, apenas homens, que deixaram suas fêmeas em segundo plano para escolher qual bebida comprariam. A fila apenas aumentara, e, assim, homens se esgueiravam pela lateral para tentar comprar mais rápido, furando fila. A garota ficara indignada, e, propositalmente, também se dirigiu para a lateral, bloqueando os homens com seu corpo. Comprou sua bebida e deixou que eles furassem, afinal, ninguém mais estava incomodado com isso.
No que ela bebeu, sentia a violência tomar conta de seu corpo, queria socar pessoas, e arreganhar os sorrisos tortos de todas elas, mas no fundo ela sentia uma completa inveja, inveja por essas pessoas conseguirem se aturar, conseguirem ficar juntas, pois para ela... não sobrara ninguém. Todos haviam ido embora. Mas ela se encontraria com os amigos, foi para a fila do recinto, com a garrafa na mão, e recebia diversos comentários:
-QUE ISSO!
-DIRETO DO GARGALO!
-MENINA ALTA!
Dentre outros. Chegando á fila, estavam todos empolgados, ansiosos para entrar.
Tao ansiosos que aguentariam uma hora em pé em uma fila, por algum motivo.
A garota não viu sentido nisso e foi beber na calcada.
Ela foi andando, com sua garrafa, e percebeu que não queria dançar.
Que ela odiava dançar.
Sentada na calcada, ela via todos passando, milhares de pessoas, ás vezes grupo de homens aparentemente solteiros que queriam "se dar bem", ás vezes casais, monogâmicos e firmes de mãos seladas, de vez em quando estrangeiros, que olhavam para tudo de maneira encantada e desconfiada.
-O que você está fazendo?
-OI? a garota respondeu ao nada.
-Isso, você, menina.
Ela olhou para a garrafa e havia uma pequena fada lá dentro. A mulher era gordinha e tinha asas de libélula e cabelos grisalho-arroxeados.
-O que você está fazendo da sua vida?
A menina ficou perplexa.
-Como assim, quem é você?
Ela começou a olhar para os lados, para ver se os outros lhe encaravam de maneira estranha. Mas depois, lembrou-se que nada disso importava, que nunca mais iria se deparar com os mesmos rostos, e mesmo que visse, nada fazia sentido mesmo.
-Meu nome é Juliana, e eu sou a sua Fada Madrinha até a sua bebida acabar.
E assim, a menina sempre que poria mais álcool para dentro, via aquela figura cada vez menos provida de líquido, menos provida de vida.
-Eu vou para casa quando a garrafa acabar...
Ela bebia, e bebia, gole após gole, e volta e meia conversava com a fada:
-Você também se sente sozinha, fada?
E ela, piscando, respondia:
-Eu sou você, então eu sempre me sinto só. Você está falando consigo mesma, sabe disso?
E a garota ria, mas ria de angústia, olhava para a garrafa e não via nada.
Em um piscar de olhos, a fada estava de volta.
-Nossa, você me assustou!
-Pois bem, minha doce amiga, mas daqui a pouco morrerei... Eu sou como se fosse sua energia e sua lucidez. E vou embora.
A menina bebia, bebia e tudo parava de fazer sentido, ela sentia tudo, desde raiva, solidão, tristeza, desamparo, mas depois ficava ligeiramente contente por estar se divertindo sozinha, de não precisar de pessoas. O problema, é que ela até queria as pessoas, mas aí quando ela via as pessoas, perdia a vontade, ela cansava, ela ficava de saco cheio.
Havia dois dedos de bebida restantes.
A menina queria chorar pela breve perda da amiga, mas não havia mais lágrimas.
-Fica comigo... dizia ela, segurando a garrafa com força.
-Adeus, criança, fique bem...
Nisso, ela bebeu os dois goles restantes, e com isso a fada se deixou evaporar, restando nada mais que ar dentro da garrafa vazia.
Ela estava sozinha agora. Teve raiva, e queria jogar a garrafa longe e ouvir todos seus cacos se estilhaçarem contra o concreto...
-Fada... me sinto mal...
Ela chegou em casa, triste, triste. Tirou os sapatos, a calca, a blusa, e ficou com medo.
Ficou com medo do próximo pesadelo.
Ela tremia, mas o doce álcool lhe embriagara a ponto de ter um sono pacífico, mudo e pesado. E ela deu boa noite a Fada, e prometeu a si mesma para na próxima segunda ir pedir o resultado de seus exames acerca esquizofrenia.