Josefina acabara de voltar do curso e seu estomago roncava. Estava economizando seu dinheiro para poder viajar e conhecer o mundo, e por isso não se prestou a comprar algo na rua." Por que fazer isso? " se perguntava, se havia comida em casa e lá poderia restabelecer as energias? Tudo bem que as suas experiências com "depender do que temos em casa" não foram muito boas... ( um dia, carente de comer doces, abrira a geladeira, armários, fogão , estantes, olhara debaixo das camas, sofás, e nenhuma guloseima encontrou; pegou o frasco de mel, derramou tudo em um copo, e foi comendo de colher, feliz da vida; estes eram os doces mais gordurosos na casa de Josefina) Mas neste dia seria diferente! Ela se alimentaria de maneira saudável, sem muito sódio, e se poria a estudar de imediato!
Chegando em casa, tomou banho, trocou de roupa, seu estômago roncando em expectativa. Sua mãe dizia que o jantar demoraria um pouco, então pôs-se a relaxar, ouvindo música, olhando para o teto de seu quarto. Até que ouviu um grito através da porta (sempre) fechada:
-Vem jantar, 'tá na mesa!
E lá se pôs Josefina a encaminhar-se para a sala, com olhos já sonolentos.
Ao aproximar-se da mesa, encara uma tigela, e não o habitual prato colorido. Observou seu conteúdo: um líquido amarelado com algumas coisas boiando. Deve ser canja. Tudo bem.
Josefina, percebendo que a tal sopa estava um tanto quanto espessa, perguntou á mãe:
-O que é isso amarelo na canja?
E a mãe, com um sorriso abobado no rosto, respondeu:
-Ah, é para engrossar, estava muito rala, é farinha de milho!
Farinha. De. Milho. Tudo bem, Josefina estava com muita fome e resolveu ignorar este aspecto, mesmo a canja aparentando um ar meio doentio, algo meio pegajoso que se parece mais com uma gororoba de prisão a uma refeição noturna, encarou a fera.
Na canja havia arroz, um pedaço de batata aqui, um de cenoura acolá... até que ela viu.
Não podia ser.
Um. Pedaço. De. Fígado.
Mas não era apenas um pedaço, eram uns cinco pedaços, grandes, escuros, contorcidos, terríveis de se ver, pareciam vermes cegos em meio a uma poça de lama amarelada.
Josefina ama quase todos os tipos de comida, mas fígado é uma de suas poucas exceções. Não tem jeito, a aparência de órgão asqueroso, o gosto metálico, o gosto nem um pouco sutil, que fica na língua e é preciso escovar os dentes várias vezes, é demais para a pobre garota.
Josefina então pensou: "Posso comer essa gororoba pois estou com fome, mas esta carne marrom fétida eu não engulo nem morta". Mas como fazer isso, visto que sua mãe é fera revestida em pele de anjo? Um único passo em falso e ela explode acusando-a de recusar comida sagrada, provinda dos céus, e que milhares estão passando fome! Se Josefina dissesse qualquer coisa a respeito da comida, sua mãe diria que ela deveria procurar comida em outro lugar, para então melhor satisfazer-se.
A garota então se viu sem escapatória, visto que sua mãe estava jantando perto dela, como iria livrar-se do maldito alimento? A resposta apareceu tão rápido quanto a pergunta foi formulada: Seu pai. Pegou então a tigela, e foi até o quarto do mesmo, porém as esperanças foram se extinguindo conforme andava na direção do cômodo, as luzes estavam apagadas...
Lá se foram as esperanças de Josefina. E agora, o que faria com cinco pedaços de fígado de algum animal, galinha, pombo, não importa, o que faria com eles?
Pensou... Havia um cachorro que habitava os fundos do prédio, ele não tinha dono, e vagabundeava por ai, indo e vindo. A janela da cozinha era virada para os fundos do prédio.
Na noite pacífica de julho, cinco pedacinhos de fígado cruzaram o céu e ( provavelmente) alimentaram um ser faminto que não tinha meios de se abastecer sozinho; Josefina é uma verdadeira heroína, e no final ainda lavou a louça.
Palmas.